Sempre que vou à copa aqui no trabalho e sinto o cheiro de café com leite em copo descartável, lembro que envelheci. Isso acontece uma ou duas vezes na semana, já que o pessoal só toma expresso puro, dificilmente adicionam leite. Quando alguém faz isso e por coincidência estou passando, abre-se um portal diante do meu nariz e me teletransporto para os meus 9 anos.
Café com leite em copo descartável é o cheiro da firma que a minha mãe trabalhava quando eu era pequena. Não consigo evitar esse flashback instantâneo. Volto para a minha mesa e percebo que agora eu consigo encostar os pés no chão quando estou sentada. Percebo que não gasto mais boa parte do tempo desentortando clips para construir estilingues, que posso mexer no telefone sem ninguém brigar comigo e que não fico mais girando a cadeira até ficar tonta.
É muito estranho ver que agora sou eu quem trabalha em um escritório. Os pensamentos de criança voltam com tudo e lembro claramente de olhar para cima e prestar atenção nas conversas dos adultos. O chefe da minha mãe me elogiando por tirar boas notas e o gostinho maravilhoso do café com leite, tirado cuidadosamente por mim daquela garrafa térmica. Aquele cafezinho era o meu momento de ser adulto.
E agora eu sou um deles. Agora, aperto as teclas do meu computador, bem mais moderno que a máquina de escrever da minha mãe, só não é mais divertido como naqueles tempos. Isso é assustador. Já tenho 31 anos. Quando os filhos dos meus colegas de trabalho visitam a firma, olho para eles e me vejo. Eu sou eles, já não sou eu. Sou a criança fuçando a gaveta da minha mãe atrás de bolachas.
Fico tentando descobrir quando se deu essa mudança para a vida adulta. Há pouco tempo, eu era uma estagiária assustada de aparelhos nos dentes. Dia desses, estava ainda indecisa sobre o que fazer no vestibular. Ontem mesmo, eu dormi empacotada numa caverna de edredons muito parecida com a dos acampamentos de infância do quarto dos Bultrins, em Olinda. Mais uma vez, dormi pequena e acordei grande.
E foi assim, de ontem para hoje, que tudo aconteceu e construí minha vida adulta. Tenho uma rotina de trabalho, namorado, compromissos sociais, contas para pagar, quero comprar um apartamento, leio livros interessantes. O último deles, “Homem Comum” de Philip Roth, por coincidência, tem como tema a velhice e a percepção, de certa forma brusca, da nossa falência física; de que, de uma hora para a outra, acabamos.
Mas, diferentemente do livro, a minha surpresa com meu café com leite em copo descartável não é perceber que acabamos: é constatar que começamos. Tão impactante quanto ter noção de que estamos envelhecendo é se dar conta de que estamos vivendo. A soma de todos esses dias vividos deu nisso que eu sou. Na infância, eu era apenas uma ideia do fazer. Agora, sou o fazer. E esse é o momento mais difícil de ser capturado e valorizado. Esse, só um café com leite para me fazer parar, notar e até apreciar. O tempo passou e eu fui junto, ainda bem. Na velhice, a percepção vai ser outra: vou ser o já feito (e Deus queira, muito benfeito). E vou ter outro cheiro de outra coisa para me fazer perceber, de repente, que estou de novo no lugar da minha mãe, aposentada, bordando toalhinhas e torcendo por uma ligação da filha. Mas isso ainda está bem longe de acontecer. Ainda vai demorar. Vai ser só amanhã.
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Texto publicado no livro "Coletânea Antônio Maria de Crônicas", lançado no Recife.