Texto publicado na revista Noize (julho/2010).
Enquanto escrevo, milhões de partículas de matéria escura do universo perfuram o meu cérebro sem eu nem sentir. Aprendi isso assistindo a mais um capítulo do meu programa de TV preferido, “O universo”, todas as quartas à noite no History Channel.
Essa tal matéria escura ocupa mais de 90% do universo, é invisível e não interage com a matéria comum. Ou seja, para ela, é como se não existíssemos. Passa por nós como um fantasma passaria por uma porta. Até suspeito de que seja feita das mesmas partículas que as almas – se você visse os cientistas tentando provar sua existência, se lembraria na hora dos caça-fantasmas.
Tão bom quanto programas que lembram o quanto você é insignificante são os que mostram o quanto você é moralmente primitivo. É também na quarta que frequento, de vez em quando, um templo budista e, às vezes, até palestra em centro espírita.
Nada de ir pedir a Deus ou a Buda isso ou aquilo. Conforto é uma coisa que você definitivamente não encontra nesses tipos de abordagens religiosas. O ensinamento aqui é quase o mesmo da matéria escura, só que o que se mostra insignificante não é a matéria, mas sim os valores relacionados a ela.
Ciência ou religião, dá no mesmo: o importante é ter algo para tirar você da bolha da rotina, que, se não tomarmos cuidado, torna-se nosso único mundo possível. De repente, nossa história se resume a ir ao trabalho, ter preocupações, colecionar reclamações e entrar na corrente de ambição da idéia de vida perfeita que nos é vendida, nos transformando em um buraco negro ambulante.
Abro os olhos, é segunda-feira. Pisco, é sexta. Onde foi parar a minha semana?
O que aconteceu comigo enquanto isso?
Perigo é se acostumar à realidade que construímos, onde não sentimos nada além do que é requisitado pelos fantasmas da sociedade. Conhecer é se machucar, é quebrar as pernas das nossas crenças e perceber o tempo todo o quanto somos previsíveis. Que sentimos raiva, inveja, que traímos e passamos por cima dos outros quando as coisas não acontecem do nosso jeito, aceitando esse padrão de comportamento humano.
Mas todo dia é uma chance de reconstruir o nosso mundo interior. Uma batalha que poucos travam, pois o prêmio é tal como a matéria escura: invisível, não interage com nossas mãos e até agora ninguém conseguiu provar que existe.