Tuesday, August 31, 2010

Café com leite

Sempre que vou à copa aqui no trabalho e sinto o cheiro de café com leite em copo descartável, lembro que envelheci. Isso acontece uma ou duas vezes na semana, já que o pessoal só toma expresso puro, dificilmente adicionam leite. Quando alguém faz isso e por coincidência estou passando, abre-se um portal diante do meu nariz e me teletransporto para os meus 9 anos.


Café com leite em copo descartável é o cheiro da firma que a minha mãe trabalhava quando eu era pequena. Não consigo evitar esse flashback instantâneo. Volto para a minha mesa e percebo que agora eu consigo encostar os pés no chão quando estou sentada. Percebo que não gasto mais boa parte do tempo desentortando clips para construir estilingues, que posso mexer no telefone sem ninguém brigar comigo e que não fico mais girando a cadeira até ficar tonta.


É muito estranho ver que agora sou eu quem trabalha em um escritório. Os pensamentos de criança voltam com tudo e lembro claramente de olhar para cima e prestar atenção nas conversas dos adultos. O chefe da minha mãe me elogiando por tirar boas notas e o gostinho maravilhoso do café com leite, tirado cuidadosamente por mim daquela garrafa térmica. Aquele cafezinho era o meu momento de ser adulto.


E agora eu sou um deles. Agora, aperto as teclas do meu computador, bem mais moderno que a máquina de escrever da minha mãe, só não é mais divertido como naqueles tempos. Isso é assustador. Já tenho 31 anos. Quando os filhos dos meus colegas de trabalho visitam a firma, olho para eles e me vejo. Eu sou eles, já não sou eu. Sou a criança fuçando a gaveta da minha mãe atrás de bolachas.


Fico tentando descobrir quando se deu essa mudança para a vida adulta. Há pouco tempo, eu era uma estagiária assustada de aparelhos nos dentes. Dia desses, estava ainda indecisa sobre o que fazer no vestibular. Ontem mesmo, eu dormi empacotada numa caverna de edredons muito parecida com a dos acampamentos de infância do quarto dos Bultrins, em Olinda. Mais uma vez, dormi pequena e acordei grande.


E foi assim, de ontem para hoje, que tudo aconteceu e construí minha vida adulta. Tenho uma rotina de trabalho, namorado, compromissos sociais, contas para pagar, quero comprar um apartamento, leio livros interessantes. O último deles, “Homem Comum” de Philip Roth, por coincidência, tem como tema a velhice e a percepção, de certa forma brusca, da nossa falência física; de que, de uma hora para a outra, acabamos.


Mas, diferentemente do livro, a minha surpresa com meu café com leite em copo descartável não é perceber que acabamos: é constatar que começamos. Tão impactante quanto ter noção de que estamos envelhecendo é se dar conta de que estamos vivendo. A soma de todos esses dias vividos deu nisso que eu sou. Na infância, eu era apenas uma ideia do fazer. Agora, sou o fazer. E esse é o momento mais difícil de ser capturado e valorizado. Esse, só um café com leite para me fazer parar, notar e até apreciar. O tempo passou e eu fui junto, ainda bem. Na velhice, a percepção vai ser outra: vou ser o já feito (e Deus queira, muito benfeito). E vou ter outro cheiro de outra coisa para me fazer perceber, de repente, que estou de novo no lugar da minha mãe, aposentada, bordando toalhinhas e torcendo por uma ligação da filha. Mas isso ainda está bem longe de acontecer. Ainda vai demorar. Vai ser só amanhã.




*

Texto publicado no livro "Coletânea Antônio Maria de Crônicas", lançado no Recife. 

O vazio que preenche



Diante dessa bolañomania, decidi degustar o meu primeiro Bolaño, optando por um petisco de menos de 200 páginas. Tava achando o livro chato até mais ou menos a página 40, quando tudo começou a se justificar e aquela mágica que faz o coração ficar dormente começou a agir aos pouquinhos, a conta-gotas, me deixando cada vez mais encantada com a história. O personagem principal é um padre apaixonado pela literatura chilena, que também é escritor e crítico literário e passa todo o livro confrontando sua vida através do tal “jovem envelhecido”, de quem parece ter raiva e às vezes medo. De uma delicadeza impressionante, com sutilezas de suspirar, a história dá um certo barato melancólico no final e tem a melhor frase de encerramento de livro que já li. Aí é que se mostra um escritor genial: o cara que calcula o efeito do todo do livro (será que calcula?) e surpreende você com a simplicidade e a humildade de uma narrativa sem pretensões maiores do que a de mostrar que tudo é tão vazio. E que nem a literatura salva.

Wednesday, August 25, 2010

Dudismo



Mais um para a minha sequência deliciosa de livros de autossabotagem. Leitura obrigatória para toda a humanidade, é assim que eu resumiria esse livro, que tenho há mais de 5 anos na estante mas que só agora tirei para ler. Basicamente, informa ao cidadão que ele não é nada disso do que ele pensa que é. Expõe de forma didática as armadilhas do auto-engano, ao mesmo tempo demonstrando a importância dessa nossa habilidade: sem ela, não teríamos nenhuma motivação para viver. Ou seja, que bom que somos todos auto-enganados, que inventamos nossas próprias razões e justificativas para os erros, que acreditamos que podemos ser algo maior do que somos (e por causa disso alguns de nós acabam se tornando maiores mesmo). Ter consciência de que mentimos falando a verdade pelo menos ajuda a ter mais humildade nas atitudes e a compreender melhor o que você classificaria como idiotice nos outros. Grande livro do economista Eduardo Giannetti, fundador da filosofia do “Dudismo”, da qual sou seguidora. Grande livro, mas posso estar enganada.